Um Sertão fluminense: mudanças climáticas podem tornar semiáridos o Norte e o Noroeste do Rio

 


 É no meio do capim queimado e de galhos retorcidos que os irmãos João e Frank Moraes pastoreiam o gado na zona rural de Cardoso Moreira, no Norte Fluminense. Nesse pedaço do Estado do Rio, estiagens mais prolongadas a cada década espalham paisagens de secura que, para a família dos dois adolescentes, resultam em animais magros, queda na produção de leite e obstáculos extras para tirar o sustento do campo. Na raiz dessas consequências socioeconômicas, apontam pesquisadores, estão alterações climáticas que, em dez a 15 anos, podem transformar tanto o Norte quanto o Noroeste Fluminense, hoje regiões subúmidas secas, em semiáridos.


— Pode olhar para todos os lados: verde só tem na beira de rio. Os pastos têm pegado fogo com facilidade. E não sabemos quando volta a chover — diz João, o irmão mais velho.


Chuvas escassas

Precipitação média anual é a mais baixa da Bacia do Rio Paraíba do Sul


Na prática, ressalta José Carlos Mendonça, professor de agrometeorologia e doutor em Produção Vegetal da Universidade Federal do Norte Fluminense (Uenf), atualmente municípios como Campos dos Goytacazes, Cardoso Moreira e São Francisco de Itabapoana já vivem, todos os anos, pelo menos três a cinco meses de clima que se assemelha ao de savanas. A tendência, segundo ele, tem sido de aumento do índice de aridez e redução no volume de chuvas. Já quando a água cai, afirma, é concentrada e mal distribuída, em temporais que não raramente provocam inundações.

No Comitê de Bacia Hidrográfica do Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana, o também professor da Uenf João Siqueira lembra estudos indicando que, na região, as precipitações médias ficam entre 768 e 968 mm anuais. Em algumas áreas, principalmente mais próximas ao litoral, diz ele, os índices podem ser inferiores a 800 mm por ano, um dos critérios para definição do semiárido brasileiro.

— É onde menos chove no Estado do Rio e em toda a Bacia do Rio Paraíba do Sul. Hoje, o Norte e o Noroeste Fluminense não têm segurança hídrica, o que prejudica a agropecuária e a instalação de indústrias. Se não houver políticas públicas específicas, as regiões, que já têm alguns dos Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) mais baixos do Rio, podem empobrecer ainda mais — afirma ele, recordando 2017, um dos anos de crise mais severa, quando 18 dos 22 municípios locais decretaram estado de emergência, com perda de lavouras e cenas de terra rachada, tal qual no Sertão.

. Foto: Editoria de Arte

Baixa vazão

Em rios como o Paraíba do Sul, ilhas surgem a cada estiagem
 
Retroescavadeira é usada para desobstruir passagem da água do Paraíba do Sul para canal em Campos dos Goytacazes Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo
 
Naquele ano, a estimativa é que os prejuízos tenham ultrapassado os R$ 70 milhões, com a perda de 20 mil cabeças de gado, e comprometimento no fornecimento de água. Desmatamento elevado e mau uso do solo e dos recursos hídricos, dizem os especialistas, são fatores que agravam o quadro. Nos grandes rios que cortam a região, as cicatrizes costumam ficar expostas a cada estiagem. Em Campos, há períodos em que a medição do Paraíba do Sul cai para 4,40 metros, abaixo da cota mínima, de 5,20 metros. Com o assoreamento e a queda na vazão, ilhas ficam aparentes, algumas utilizadas por moradores para lazer.
Em 2021, uma chuva atípica no começo de junho aliviou temporariamente a sequidão. Porém, já são mais de 40 dias sem precipitações significativas. E, nesta última semana, operários precisaram usar uma retroescavadeira para abrir caminho no banco de areia que obstruiu um dos canais artificiais cuja rede com mais de 1.400 quilômetros de extensão leva água à produção rural e também às indústrias. Já São João da Barra — município onde o oceano avança no distrito de Atafona — sofreu com uma redução do abastecimento, segundo a Cedae, devido ao fenômeno conhecido como “intrusão salina”. Com pouca força das águas do Paraíba do Sul, as do mar subiram até o ponto de captação da cidade.

Produção prejudicada

Do plantio de cana à pecuária, redução da atividade
 
A produção de abacaxi em São Francisco de Itabapoana: grande parte do PIB do município é oriunda da agricultura Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Rios mais baixos, não mais que garoas de abril a setembro e recorrentes veranicos, sem uma gota de chuva em meses como janeiro, quando os índices pluviométricos deviam ser maiores, têm imposto incertezas aos agricultores e queda na produção.

— Todos os dias, ao acordar, primeiro rezo, depois vejo a previsão do tempo, para saber se vai chover nos próximos dez dias — diz Luiz Eduardo Crespo, que produz alimentos como o milho verde em Campos e preside a Associação Norte Fluminense dos Produtores de Cana.

Só a cana-de-açúcar na região, apontam dados do IBGE, recuou de mais de 184 mil hectares plantados no início da década de 1990, para 44,5 mil hectares em 2019. Na pecuária, seja em Campos, seja em municípios do Noroeste, como Itaperuna, as estiagens elevam os custos.

Pequenos agricultores

O agricultor César Augusto Passos da Silva em frente a sua casa: nem sempre a caixa d'água está cheia Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Os que não têm recursos contra a seca são os que mais sofrem
Padecem ainda mais os pequenos produtores, com poucos recursos para enfrentar as secas e que são a maioria na região. No Assentamento Francisco Julião, em Cardoso Moreira, César Augusto Passos, de 68 anos, diz que uma pequena lagoa em sua propriedade garante água para os animais. Mas, com o pasto seco, ele tem dificuldades para alimentá-los. E ele próprio enfrenta privações de água para beber e cozinhar.
— A prefeitura prometeu poços artesianos, mas nunca fez. Porque bebia a água da lagoa, tive problemas de saúde que me levaram a duas internações. Hoje, dependo de caminhão-pipa — diz ele, mesmo estando a poucos metros do Rio Muriaé.

Autor: Rafael Galdo

Fonte: oglobo.globo.com


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